Acordar. Acordar como diz o poema. Acordai homens que dormis. Acordar. Essa porta que se abre, essa porta que cruzamos para não mais voltarmos para trás. Acordar da sonolência em que fomos induzidos, essa miragem mortal e cega que nos encarcera e nos come e nos gela. Acordar. Essa brecha por onde irrompe a verdade, essa luz que nos permite ver. Acordar. Acordar. Acordar. Acordar para cair no sono outra vez.
Acordamos e vamos à casa-de-banho. Fazemos pontaria para a água da sanita e puxamos o autoclismo. As mulheres sentam-se, não precisam de fazer pontaria nem de limpar os pingos no tampo. Damos um peido. Que a vizinha de baixo não tenha ouvido, pensamos. Olhamos o espelho, deixamos que o espelho olhe para nós. As olheiras continuam a empurrar os olhos para fora. Talvez um dia caiam e alguém os pise para deixarmos de ver o que acontece quando nos olhamos ao espelho. Ou uma plástica, talvez um dia tenhamos dinheiro para fazer uma plástica. Várias. Despimos a roupa enquanto o espelho nos cobiça a nudez. Olhamo-la também. Entramos na banheira, abrimos a água. Esfregamos o corpo, demoramos as mãos nos genitais. Desligamos a água. Secamos a pele com a toalha e saímos da banheira enquanto o espelho nos cobiça outra vez. Vamos para o quarto, escolhemos a roupa. Camisa e gravata para os senhores, saia e casaco para as senhoras. Vestimos a roupa. Temos de enfrentar o espelho outra vez, ele enfrenta-nos também. Gravata apertada, camisa engomada, saia em cima do joelho e casaco sem borbotos. Arranjadinho e bonitinho, como se quer, ouvimos o espelho dizer. Ouviríamos, se ele falasse. E o silêncio, alguns espelhos também nos dariam o silêncio, que silêncio é coisa que nunca nos deram, mesmo não falando. Saímos de frente do espelho. Fazemos a cama e vamos comer para a cozinha. Pomos a comida na boca, mastigamos, sentimos a queda do primeiro pedaço de pão no estômago. Empurramos o primeiro pedaço de pão com leite ou café ou sumo ou chá, depende dos gostos. Vemos as primeiras notícias da manhã. O acidente na auto-estrada, o novo caso de corrupção, o livro de mais uma very important person. Mudamos de canal. Notícias também. O acidente na auto-estrada, o novo caso de corrupção, o livro de mais uma very important person. Desligamos a televisão. Voltamos à casa de banho, pontaria à água da sanita, as mulheres sentam-se, lavamos os dentes. Entramos no quarto, calçamos os sapatos, voltamos à cozinha, saímos de casa. No outro dia acordamos e fazemos tudo outra vez. E no dia a seguir. E no dia a seguir. E no dia a seguir.
Acordar. Acordar deste ritmo autómato que se sucede e se repete. Que se desliguem as máquinas para que despertem os homens. Acordar da hipnose demente que nos conduz. Acordar. Olhar a luz, emergir pela brecha. Sair do coma e tocar a verdade. Acordar. Cruzar a porta e não mais olhar para trás. Acordai homens que dormis. Diz o poema. Digo eu. Dizemos nós. Acordar. Acordar. Acordar. Acordar para nunca mais dormir. Nem que me matem.
Alcanhões, 20 de Novembro de 2014 – 19h19m