“Reforma do Estado” não significa o mesmo para todas as pessoas. Não significa, certamente, o mesmo para a coligação no governo e para os partidos na oposição. Para a coligação PSD/CDS-PP o desejo de reformar o Estado implica reduzir o papel do Estado nas funções sociais, designadamente na educação, na saúde e na segurança social. Trata-se de um ponto de vista ideológico de que quanto menos Estado mais liberdade os indivíduos têm para se governarem. Esta perspetiva, de uma maneira simplista e redutora, tem vindo a ganhar força na nossa sociedade que vê o Estado como uma ameaça à liberdade individual e até à economia. Bom, até um certo ponto, pois muitos dos que se insurgem contra o poder coercivo do Estado são os primeiros a exigir que este participe no relançamento da economia, que desenvolva programas de apoio às empresas, que subsidie o empreendorismo e a inovação empresarial. Afinal, em que é que ficamos?
Com a crise instalada, a premência da reforma do Estado tem vindo a ser justificada com a necessidade de obedecer ao reequilíbrio orçamental e à redução da despesa pública. Daí à narrativa da redução da despesa pública associada à diminuição das funções sociais do Estado foi um saltinho, pouco importando que se gastasse o mesmo desde que para “alavancar a economia” – o que quer que isso fosse, em termos práticos. Com a entrada de Portugal na União Europeia bem vimos como cresceu o parque automóvel topo de gama de muitos que foram apoiados por fundos comunitários. E como cresceram, como cogumelos, as empresas de formação com cursos, no mínimo, duvidosos. E como se fizeram obras públicas de fachada e de retorno improvável. Estado e particulares, muitas vezes em promíscua osmose, brincaram com o pagode e com os fundos comunitários. Muitos são os mesmos que querem agora que seja o Zé Pagode a pagar a crise, denunciando como perniciosos os apoios sociais de combate à pobreza, o investimento em escolas públicas de qualidade e o princípio da universalidade do serviço nacional de saúde. A ideia que vinga, para muitos, é a de que foram os pobres que viveram acima das suas possibilidades e de que os funcionários públicos, não pertencendo ao setor produtivo primário ou secundário, não produzem riqueza para o país.
Pois, mas muitos desses são os mesmos que desmantelaram o setor público produtivo, por exemplo na área da produção de energia e da indústria naval. Sim! Como escreveu um amigo meu, não foi o Estado que geriu mal as empresas públicas, foram os filhos dos popós que foram passando pelas administrações dessas empresas. Muitos foram os mesmos que, descapitalizando o Estado do seu capital humano, entregaram as suas funções a consultores privados, cuja reputação sempre os colocou na esfera da entourage política. Os mesmos que preparavam as privatizações das empresas públicas viáveis e lucrativas, com honorários pagos pelo Estado, isto é, pelo Zé Pagode.
A despesa pública não diminuiu. A dívida pública aumentou. As escolas são hoje espaços onde no dia-a-dia a palavra esperança e solidariedade tem vindo a ser substituídas pelas de competição (perdão, competitividade) e excelência, o que quer que isso seja. A solidariedade pratica-se com as campanhas para ajudar os pobrezinhos. Os mesmos que são empurrados, aos doze anos, para um ensino profissional que não se sabe muito bem o que é e para que serve, num mundo onde o emprego estrutural exige competências pessoais de flexibilidade e adaptação a novos desafios e não à aprendizagem de um ofício. Os hospitais não têm meios nem profissionais para responder às necessidades, enquanto todos os dias emigram enfermeiros e outros profissionais qualificados para países que lucram com o investimento português no ensino superior público de qualidade.
Algumas freguesias foram extintas ou fundidas, sem critério. As direções regionais substituídas por direções gerais num movimento atroz de recentralização do Estado, ao ponto de a asfixia financeira das autarquias servir para lhes retirar autonomia e capacidade de resposta dos problemas dos cidadãos. Os tribunais, os serviços de saúde e as escolas são encerrados, contribuindo para a desertificação e para um Portugal cada vez mais desigual. As regiões administrativas – responsáveis pela distribuição dos meios financeiros para o desenvolvimento territorial – não têm rosto nem respondem perante os eleitores. Enfim, a reforma do Estado não só ficou por fazer como se esfrangalhou o existente.
E este governo não tem condições, nem revelou competência, para iniciar qualquer reforma do Estado na atual legislatura. A meu ver, a reforma do Estado implica um profundo debate sobre a administração do território, e o sistema político e administrativo como um todo. E qualquer revisão da constituição não pode servir para aniquilar um Estado ao serviço dos cidadãos e do desenvolvimento de um país solidário e justo.
Um governo que revela incapacidade de gerar consenso, como se viu com a rejeição liminar de um manifesto para a reestruturação da dívida portuguesa que agrega cidadãos de todo o espectro político português, não tem legitimidade para fazer a reforma do Estado que o país precisa. O mesmo governo que todos os dias é contestado na rua. O mesmo governo que defende teimosamente uma política de austeridade, “para além da troika”, enquanto os parlamentares europeus dos seus partidos políticos votam um relatório europeu que defende o fim das políticas de austeridade.
As pessoas vivem cada vez em piores condições, logo, como pode estar melhor o país? Os portugueses precisam, como de pão para a boca e sem demagogias, da palavra “esperança”. Os portugueses mostraram estar dispostos a fazer sacrifícios para que o país retomasse a sua soberania numa Europa que importa restaurar. A reforma do Estado obriga a um largo consenso, de toda a sociedade portuguesa, de todos os partidos políticos. Mas não pode ser feita num estado de exceção a que nos tem habituado esta maioria no parlamento e no governo.
Elvira Tristão




























