“Quantas mulheres mais terão de morrer enquanto os processos jazem adormecidos nos tribunais? Quantas vezes mais teremos de ouvir e ler na imprensa que ‘a vítima já tinha participado os maus tratos à polícia’ ou que ‘a situação estava há muito sinalizada pelas autoridades’? Quanto sangue mais terá de ser derramado até que um partido do arco de sustentação do governo dê o primeiro passo?”, escrevia eu neste jornal numa crónica de junho de 2016, com o título “Maria da Penha” sobre a inexistência de mecanismos legais no nosso país que permitissem remover de imediato o agressor do contacto com a vítima como medida cautelar.
Exceptuando alguns encontros e seminários com técnicos e especialistas na matéria a exporem eloquentemente as suas opiniões em discussões académicas e os recorrentes inquéritos parlamentares – flamejantes, vibrantes, hipnotizantes – mas inconclusivos, e gastos de milhões em publicidade nas televisões e rádios nada se fez objectivamente nos últimos anos, em sede de processo penal, para travar o flagelo que é a violência – psíquica e física – contra mulheres, crianças e idosos no contexto familiar.
E se tal omissão continua a induzir (leia-se encorajar) o arguido à repetição dos actos, que se desejaria que não reincidisse até à decisão final e passa muitas vezes pela morte da vítima, o que dizer da brandura dos tribunais na análise, interpretação e decisão da matéria em julgamento?
E como classificar o Ministério Público – cujos representantes nos tribunais deveriam ser eleitos por sufrágio popular – quando há procuradores como o que desesqueletizou um inquérito no contexto de violência doméstica, não obstante alerta amarelo da Polícia, de tal maneira que o baixou para “ofensa à integridade física simples” e, em consequência, “carecendo de queixa da qual a assistente desistiu” etc. etc. no entendimento do insigne pensador, e redundou na morte do arguido e dois seres inocentes?
Ou quando um intocável e senhorial juiz entende que “mulher autónoma” não pode jamais, em sua douta argumentação, ser vítima de violência por seu excelso e santo marido e vai por isso absolvido? Valha-nos Deus!
Os números que se seguem são assustadores, as mulheres e mães portuguesas que nos deram o ser, que cuidam de nós, que nos tratam bem não obstante imensas vicissitudes, e são responsáveis pela gestão e equilíbrio emocional da testosterona masculina nacional, não merecem isto:
– Segundo um relatório divulgado em 8 de Março de 2018, no período de cinco anos – de 2012 a 2016 – cerca de 78% dos 45 000 inquéritos de violência doméstica comunicados à Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna acabaram arquivados por “falta de provas”.
– No mesmo período, dos restantes inquéritos, ou seja 22%, que chegaram a julgamento, apenas 58% resultaram em condenação, mas a penas leves, sendo que destas 90% foram suspensas. Ou seja: apenas 10% de penas efetivas aplicadas!
Tem de se desmistificar a ideia, errada ou escamoteada, que é propalada sem qualquer controle por alguns OCS, nomeadamente a CMTV – Correio da Manhã Televisão – que tem por lá um batuque de comentadores que arrebenta com os tímpanos de qualquer cristão que, por tanta asneira dita, se lhe esgota a infinita paciência.
Meias tigelas de inteligência, cabecinhas de paquiderme, que entre outras barbaridades dizem que a pena suspensa é uma condenação!
Na verdade, a suspensão da pena, às vezes condicionada ao cumprimento de determinadas obrigações, é uma espécie de “cartão amarelo” sobre o comportamento futuro do “condenado”, na prática muito vago e diluído, e muito difícil de se controlar. Quase sempre a suspensão da pena é uma absolvição a prazo.
É intrincado, volúvel e vago, o processo do controle de eventual reincidência do “condenado” e este acaba, quase sempre, por não “sentir” o peso da Lei.
Apenas 10% acabaram em penas efetivas. Uma Justiça macha, convenhamos!
– No ano de 2018 registaram-se 24 mortes de mulheres em contexto doméstico, mais 6 do que em 2017.
– Incluindo o homicídio perpetrado há poucas horas em Vieira do Minho, são já 12 (doze) as mulheres assassinadas este ano, metade de todo o ano passado. Devíamos ter vergonha.
É uma hecatombe a que é preciso pôr-se termo, e já!
Não quero Portugal a ser conhecido lá fora como o país em que se maltratam as mulheres e onde os juízes citam textos bíblicos, difamam a vítima e absolvem os criminosos.
São precisas urgentemente leis proativas e de proteção a potenciais vítimas, bem como a implementação imediata de acções de formação técnica e de sensibilização cívica de magistrados judiciais e do Ministério Público.
Todos somos pessoas e os portugueses na sua grande maioria abraçam, defendem e levam pr’á frente espontaneamente, como que movidos por uma mola coletiva invisível, causas justas da forma melhor que o sabem fazer – com resiliência e um fino humor sibilino – único no mundo – capaz de derrubar deuses, quando é preciso, dos seus pedestais. Mesmo quando os deuses usam toga.
Decidiu bem o Juiz Presidente da Relação do Porto: o puritano do seu colega irá estar melhor, e mais protegido da “ira popular”, no Cível.
A sociedade civil deu recentemente, uma vez mais, prova da sua existência e do peso que tem: alevanta-se como um tsunami a opinião pública, silenciosa e arrasadora, quando algo não está bem e lhe cheira mal.
Mais de 50% dos portugueses, diz um relatório europeu conhecido há dias, não distingue as notícias falsas das verdadeiras. Pode ser verdade, mas o português médio e as mulheres portuguesas em geral sabem distinguir, por instinto, o que lhes faz bem e o que está mal.
Respirar o mesmo ar e batermos os corações ao mesmo ritmo é que o correto: faz-nos fortes e unidos.