Rotina de sábado de manhã: ida às compras da semana com paragem breve na esplanada daquele café esplanada da moda que fica em Vale de Estacas. Outrora local taciturno e ermo onde, durante séculos seguidos, falavam sozinhas figueiras e outras eiras entre mato rastejante, o vale que liga Fontainhas e São Domingos à EN 3 e à cidade alta, ganhou vida, ficou bonito e verdejante com jardim para os miúdos e pista de skate onde os mais graúdos, de faces imberbes e corpos esguios a caminho de ser homens exibem habilidades às namoradas que os contemplam e admiram-nos encantadas em sonhos de dulcineias perdidas de paixões, mas que hão-de crescer e um dia serão mulheres.
Até por lá puseram uns aparelhos esquisitos que a malta reformada, habituada até então a jogar à sueca e às damas enquanto decilitrava uns copos de três no tasco mais próximo, começou a descobrir que afinal aquilo servia para lhes esticar o esqueleto. Ali bem perto, não fosse dar-lhes um treco, até se instalou o quartel dos nossos valorosos soldados da paz. Parece que naquele espaço tudo foi pensado ao pormenor! Não sei por mais quantos anos vou pagar a obra, mas que Moita Flores teve visão, lá isso teve!
Feitas as compras no supermercado da colina e arrecadados os víveres na bagageira do carro, puxei de um cigarro, acendi-o, coloquei o braço sobre a porta e esfumacei enquanto contemplava, por breves por momentos, o horizonte perdido em pensamentos. Foi o suficiente para que ela, que me conhece bem, lançasse o clássico: “então?”. Nunca pode a mulher que se ama ficar sem resposta a tão vincada interrogação. “Sabes, amanhã é dia de lançar a crónica do mês. Por princípio a que me impus, abordo temas da actualidade ou efemérides e estou por aqui a pensar se vou escrever umas coisas sobre o Acordo de Lusaca, faz no domingo precisamente 40 anos, ou sobre as condenações no processo Face Oculta”.
“Se escreves sobre o 7 de Setembro e sobre tudo o que se passou depois em Moçambique, vais desenterrar fantasmas. Ainda há muitas feridas abertas, sabes bem, e estás mais à vontade para falar sobre a justiça e o crime… por motivos óbvios”. E olhou-me e olhei eu para ela. Há mulheres raras que dão aquele toque inexplicável de mistério e subtileza àquilo que dizem que nos levam a reconhece-las como sábias que o são na verdade.
“Sim, tens razão. O que se passou em Moçambique ficou p’rá História, mas ontem também se fez cá História, não foi? Sabias que, do coletivo de juízes, como sabes são três, lá do Tribunal de Aveiro, duas eram mulheres? E bonitas, vi a foto no CM. Fogo, juízes do caraças! E exemplar que foi o trabalho da PJ e do Ministério Público, não deixaram pontas soltas. O tribunal só podia decidir como decidiu, mas o que é fabuloso é que os juízes não se deixaram ficar com esses paninhos quentes, tão em voga, de suspender as penas ao peixe graúdo. Até parece que têm medo e na prática, digo-te eu, isso não vale nada.”
Chovia quando chegámos a casa. E no país todo, segundo as notícias. Diz o povo que “boda molhada é boda abençoada”. No processo Face Oculta, houve boda feliz entre a investigação da polícia e o tribunal. Abençoe-se a Justiça, pois. A Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Tribunal de Aveiro deram uma lição de coragem e cidadania ao povo português. Dignificaram-nos e deram-nos alento.
Que sirva de exemplo esta douta decisão – que, quase aposto, será sustentada em instância superior – a quem pensa que, em função dos poderes que lhe deram, pode fazer o que quer e viver à grande e com arrogância à custa do dinheiro que é de todos nós.
Que é nosso, que é do povo.
E com o povo e com que é do povo não se brinca!





























