Quando em 1978 cheguei a Santarém, por via de acidentes de percurso que nos acontecem na vida, estava longe de imaginar que, nascido em Goa, remota paragem do Oriente, educado por minha mãe e tias a respeitar e a seguir a mensagem de força e a visão, indómitas, de Afonso de Albuquerque, a bênção evangelizadora de Francisco Xavier e o amor à Pátria, inculcado pelo pai, sargento do Exército, viesse cá parar: foi um choque tremendo para mim!
Não gostei nada, mesmo nada de Santarém, quando cá "aterrei". Sentia uma subtil e pouco disfarçada fobia dos escalabitanos em relação aos "retornados", coisa que eu não era. Sou duas vezes refugiado: de Goa e de Moçambique, em função de políticas insanas de Salazar e Marcelo Caetano, presos que estavam a uma constituição que apontava para uma nação pluricontinental quando o mundo indicava o rumo para outras políticas.
Eram os frequentadores habituais do "Tintol", do ""Abegão" e do "Quinzena", alcoólicos anónimos, hoje apáticos e acomodados a ver novelas, minados de ácido úrico e diabetes, e do "Central" e "Meloi" também, onde paravam as autodenominadas elites da região, as quais, entre um chazinho e um pastel de nata, faziam negócios e negociatas, que passavam por estratagemas "legais" de fugas de divisas para o estrangeiro enquanto blasfemavam contra a "maldita revolução de 25 de abril". Esta sangria nacional – fuga de fundos para o estrangeiro – continua com a cumplicidade criminosa de quem nos governa.
Levei anos, alguns dos quais à patrulha calcorreando ruas e travessas, outros à frente das Brigadas Anti Crime da PSP com polícias ao meu lado de alto gabarito, profissionais que recordo com saudade e respeito, até conhecer os meandros sinuosos em que esta "elite escalabitana", pedante e rançosa, de verniz estaladiço, se movimentava naqueles tempos.
Foram tempos difíceis, os primeiros dias vividos em Santarém naqueles anos 70/80; sentia-me só e abandonado, entregue ao destino com uma mulher jovem e um filho bebé. Só mesmo com a ajuda da minha mulher, companheira de sempre e inseparável ao meu lado, consegui vencer e ultrapassar o ferro de insanidade que os escalabitanos tinham, por tendência, de pôr nos forasteiros que quisessem, ou precisassem, como foi o meu caso, de cá se fixar. Era um cerco sufocante e inimaginável, mesmo depois e em plena Liberdade, conquistada pelo 25 de Abril.
Muitos anos se passaram e hoje Santarém é uma cidade cosmopolita, multicultural, onde a Liberdade é de facto uma constante, e se respira uma nova era com uma certa qualidade. Monumentos foram restaurados, bairros degradados foram requalificados, ruas e avenidas rasgadas, jardins e parques foram criados. A malta nova – que bom é ser jovem! – tem uma mentalidade potencialmente criativa que eu não vira antes quando cá cheguei: alegra espaços, tem projetos e aponta rumos. Cabe-nos a nós, mais velhos, não os enganar com facciosismos, frases feitas e preconceitos baseados em raça e religião.
Todos nós – empresários, prestadores de serviços, mecânicos e eletricistas, torneiros e calceteiros, pintores e atores, industriais, autarcas, polícias e funcionários públicos em geral – temos de fazer tudo de bom e dar tudo por tudo para que os nossos miúdos não se sintam desamados e tenham de emigrar para outras paragens.
Santarém tem futuro e precisamos de gente nova como de pão para a boca!
Vítor Catulo