Que os nossos hábitos de consumo mudaram desde a instalação dos supermercados e das grandes superfícies em Portugal, todos sabemos. Que esses mesmos hábitos tiveram de mudar em função da crise, todos sentimos. Daí que, quando há promoções, atiramo-nos a elas como gato a bofe. A cada dia que passa, há mais portugueses com dificuldades de pôr comida na mesa.
Longe vão os tempos em que a mercearia do bairro ou a venda da esquina eram os únicos centros de distribuição das coisas lá para casa. Estávamos à mercê do merceeiro e ele era o dono e senhor dos nossos gostos e necessidades. Sem concorrência nas proximidades, praticava os preços que entendia e só vendia o que lhe dava mais lucro.
Quem não se lembra daqueles anos 70 e 80, quando as falhas de abastecimento no mercado eram uma constante, do simpático senhor da mercearia nos impor a compra de um pacote de velas em contrapartida ao quilo de batatas que necessitávamos? Ou de quando nos vendia azeite adulterado com que iríamos temperar o bacalhau da consoada? E quem não se recorda das toneladas de batatas destruídas em Trás-os-montes alegadamente para defender, segundo diziam os agricultores, os preços na produção?
As autoridades de outrora viam-se impotentes para combater estas práticas, que constituíam um muro blindado de ditadura comercial e empobrecia a economia nacional, cerceando na mesma medida a liberdade de escolha do público consumidor. Confrontados com uma legislação anacrónica, ambígua e ineficaz, não era incomum vermos agentes de fiscalização a fechar os olhos a este estado de coisas e a pactuar com os merceeiros, porque na verdade também eles precisavam de comer e alimentar a família.
Em 1984, na esteira da estabilidade política e social que se verificou e tendo por horizonte a adesão de Portugal na Comunidade Europeia, foi gerado um dos melhores diplomas que Portugal de Abril conheceu na área da defesa dos direitos do consumidor, da economia e da saúde pública pela via alimentar: o vigoroso Dec-Lei nº 28/84, de 20 Janeiro. Era Primeiro Ministro, o Dr. Mário Soares e Presidente da República, o General Ramalho Eanes
Bem redigido, claro e abrangente, o diploma não deu hipóteses de fuga a mercenários da lei ao serviço de merceeiros e mixordeiros. Abriu caminho para a qualidade e guindou o respeito que se deve às pessoas, enquanto consumidores, aos patamares mais elevados!
Antes em fase de experimentação, os supermercados instalaram-se de vez, surgiram os hipers, grandes superfícies, e formaram-se grupos económicos bem conhecidos de todos nós. Investiram-se milhões em infraestruturas e criaram-se centenas de milhares de postos de trabalho, diretos e indiretos. Agricultores, homens do mar e criadores passaram a ver o produto do seu trabalho escoado sem sobressaltos e com margens de lucro aceitáveis, a economia de consumo cresceu e as palavras de ordem passaram a ser: qualidade e concorrência.
Os grupos económicos instalados, alguns de raiz internacional como sabemos, têm hoje nos seus quadros gestores criativos e eficientes. As ações são concertadas e a gestão cirúrgica. Nada fica ao acaso e são alérgicos à improvisação e à vulgaridade. A concorrência conduz à qualidade. A concorrência feroz conduz à suprema qualidade. Ganha com ela o consumidor final.
Já se falou e escreveu muito sobre a promoção do Pingo Doce do dia 1º de Maio e não quero ser mais um a fazê-lo. Cada pessoa tem direito à sua opinião e o caro leitor, se chegou até aqui, já conhece a minha. Há pessoas porém, que por inerência das suas funções e dos cargos que exercem, não têm só opiniões. Quando opinam, decidem. Refiro-me concretamente ao que disse a Ministra da Agricultura sobre a sua intenção de impor regras às promoções e à concorrência nas cadeias de distribuição.
Não antevejo nada de bom no que daí virá, espero todavia que a dinâmica senhora, antes de dar qualquer passo, se inspire primeiro dando uma vista de olhos à lei-base das infrações antieconómicas e contra a saúde pública e escute o que o seu colega da Economia tem a dizer sobre o assunto. Quando não, na ânsia de legislar e “conciliar as partes”, poderá dar um tiro no pé e abrir caminho à inexigibilidade da qualidade e à cartelização de preços dos bens de consumo, tal como acontece com os combustíveis.
Vítor Catulo