Há muitos anos, era eu ainda um imberbe, li um livro, não sei se conhecem, chamado “O Principezinho”. Na altura achei-lhe piada, tinha uns bonecos pitorescos, e o autor era alguém com um nome tão impronunciável que ainda hoje tenho alguma dificuldade em me lembrar.
Entretanto a puberdade instalava-se, os desafios entre rapazes eram constantes e não se queria perder nem a feijões quer fosse numa futebolada ofegante ou num jogo de paulito queimado (uma espécie de críquete dos camones adaptado a África) disputado até ao milímetro. E em finais de tarde cálidas pavoneava-se, mexidos e torcidos, nos bailes de garagem em que se bebia coca-colas e fantas aos litros enquanto as miúdas pestanejavam lúbricas despertando-nos tempestades de testosterona. Sabia lá eu o que era essa coisa de manifestações de crescimento naqueles tempos glórios! Mas que a mãe natureza cumpria o seu papel, lá isso cumpria!
Infindaram-se os estudos, que o tino não era muito, e fez-se a tropa. Andou-se pela mata, deram-se uns tiros, arranjou-se emprego, encontrou-se a companheira e instalou-se casa. Imaginava um mundo azul e futuro áureo. Até que as estrelas um dia deixaram de se ver. Alguém as roubara, tomara conta delas, nacionalizara-as. Como se alguém fosse dono das estrelas! Sentir-me-ia vazio, só e deserto não fora aquela rosa que colhera! Só me cabia, pois, o dever de cuidar dela e, cuidando-a, cuidaria ela também de mim.
As peripécias daquele pequeno livro, a que achara apenas piada outrora, vieram-me anos mais tarde à lembrança, por uns instantes, durante uma longa noite de insónia. Uma insónia febril, dolorosa e cruel a contar as horas e os minutos que faltavam para tomar o avião a caminho de um destino chamado Liberdade. Um porto de abrigo onde pudesse ver de novo ver as estrelas. Aquela explosão, chispa de luz vinda das profundezas do poço da minha memória adormecida, amenizou-me os medos e as angústias que me queriam prender naquela noite. Afinal o principezinho estava comigo! E a rosa que eu cuidara com tanto desvelo dormitava, fresca, aveludada e serena, a meu lado aninhada no botão que me dera de presente. Era a salvação e a redenção dos meus pequenos pecados e uma onda de felicidade suprema fez-me sentir humano e invencível.
Quarenta anos volvidos eis-nos que vamos ver o filme com as petizes de hoje. Prenda natalícia por escolha exclusivamente dela, pois que nunca eu lhe contei nada do que vos conto agora. E no final da sessão, com aquelas criaturinhas a fazerem-nos perguntas sobre a rosa as estrelas confirmei que há sempre um horizonte encantado a redescobrir e que a ponte da vida nunca está completa. Afinal o que o essencial é invisível.
Antoine de Saint-Exupéry é o autor do livro que aqui escrevinho após ir ao auxiliar de memórias. Que tenhamos um ano com um principezinho a morar dentro de cada um de nós.