Qua, 15 Janeiro 2025

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Diferentes e iguais

vitor catulo new

Vítor Hugo Catulo

O dia 4 de fevereiro é feriado em Angola: “Dia Nacional do Esforço Armado”, promulgado pelo MPLA, partido que tem estado sempre no poder desde a proclamação da independência da antiga colónia portuguesa, em 11 de novembro de 1975.

No ano de 1961 desse dia, um grupo de “heróis da libertação”, segundo o MPLA, “um bando de assaltantes sanguinários, bêbados e drogados” segundo os relatos de militares portugueses e das autoridades administrativas e policiais da época, tomaram de assalto a Cadeia de São Paulo e a Casa de Reclusão, em Luanda. Foram mortos à catanada sete polícias e um militar, soldado. Um dos polícias, de seu apelido Moleiro, enfrentou os atacantes, à “Mouzinho”. Com a sua pistola, que foi buscar à camarata, pois estava de folga, abateu uns quantos e susteve a invasão. A sua bravura foi reconhecida e até lhe deram uma medalha, mas viveu o resto dos seus dias com mazelas no corpo e na alma. Pudera!

A reação das autoridades portuguesas de então e dos colonos contra a população negra não se fez esperar. Seguiu-se uma carnificina de proporções bíblicas! “Preto bom é preto morto” e “mata que é preto”, eram as palavras de ordem.

Um rastilho de pólvora que não deveria nem ter começado se Salazar, o “patriarca do regime”, se tivesse reunido à mesa quando Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Eduardo Mondlane lhe pediram para falar sobre África e de assuntos africanos, ainda nos anos 50, do século XX.

“África é Portugal e ponto final”, mais ou menos assim terá respondido o ditador aos atrevidos!

 Aos primeiros sinais da revolta, conforme a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) e o serviço de informações militares lhe faziam chegar, também o Iluminado não fez caso. “A situação é tensa; há sinais de revolta; à consideração superior”, terminavam assim, invariavelmente, os relatórios e memorandos que iam rematados, antes da assinatura, com a chapa do ditador: “a bem da nação”.

Nos terços que rezava o pudico homem, um santo e salvador da pátria, devotadamente todos os dias a Nossa Senhora, na capelinha de São Bento, não se esquecia nunca de pedir por Portugal.

Seria mais ou menos assim: “salvai de pensamentos pecaminosos de independência, meu bom Deus, os meus pretinhos de África e, já agora, também os da Índia, Macau e Timor”.

Não seria eternamente Portugal uno, indivisível e multirracial, e não deveria ser ele para sempre o eleito, o escolhido, o ungido timoneiro da Nação?

A retaliação foi terrível: seguiram-se dias de fogo e fúria sobre os portugueses de pele negra em Luanda e arredores suspeitos de pertencerem aos “turras” e foram mortas indiscriminadamente centenas de pessoas! Em Luanda e no norte de Angola correu sangue, muito sangue! O ódio secular entre brancos e pretos naquela Angola colonial tinha explodido.

A Caixa de Pandora abrira-se!

E o Império ruía: Goa, a coroa, viria a cair em Dezembro de 1961 para as mãos da União Indiana do Nheru.

Foi um ano negro para o Portugal de Salazar!

Entretanto, no mar de chamas que se seguiu e que ditariam o fim de um império de pés de barro numa madrugada de Abril, caíram Guiné e Moçambique. E também Cabo Verde e São Tomé.

Moçambique, fevereiro de 1973: aqueles dois lá atrás na Berliett, a trocarem galhardetes, já me estavam a irritar desde há vários quilómetros. O bate-boca entre o 1.º cabo Momade, do recrutamento local, uma torre de ébano, e o soldado Morais, da “metrópole”, um metro e sessenta de estatura, bem medido e esticadinho da sola das botas de lona fabopol ao quico, mas robusto e com “pinta de alfama”, começara logo aos primeiros alvores no quartel general de Nampula quando formávamos a coluna.

Eram sessenta camiões civis com reabastecimentos para as tropas estacionadas no “mato”, escoltados por uma dezena de viaturas militares, estrategicamente distribuídas, com as respetivas secções de atiradores em cima delas.

Coube-me seguir na última, o reboque de pronto socorro, “carro vassoura” como era conhecido, que tinha a missão de defender a cauda da coluna e de não deixar ficar ninguém atrás.

Ia conduzida por um soldado entusiasta do fado e veterano da “picada” já em período de “matabicho”, palavra do linguajar moçambicano com vários significados divertidos, mas de raiz europeia, neste caso “para além de…”. 

O homem era também afável, conhecedor das coisas e más surpresas do mato, e desembaraçado.

Não era incomum que a Pátria, sempre ávida dos seus filhos varões, não contente com os 24 meses de comissão em terras africanas que lhes impunha, exigisse mais uma mancheia de dias até voltarem para casa.

Não havia maneira de eu conseguir calar aqueles dois: “preto pr’aqui, branquela pr’a ali..” Até que aconteceu um providencial acidente, pouco antes de chegarmos ao quartel dos Comandos, em Montepuez. Aproveitei para os separar e foram reforçar as viaturas mais à frente. 

Brooommm! 

– Isto é mina, só pode! 

Um suor frio e húmido invadiu-me o corpo todo. O camuflado que trazia de casa, desde há três dias, perfumado a Old Spice, começou a cheirar-me a azedo. A garganta secou e a língua colou-se-me ao céu e ficou espessa. “Sinais típicos de medo”, pensei. Nunca ouvira tal explosão tão perto, nem na instrução! E os gritos que se seguiram? Aquilo era real, não era treino. Eu estava dentro da guerra e não estava a gostar daquele filme!  

Tínhamos pernoitado no aquartelamento de  Nancatari e feito alto em Nairoto. Tudo parecia bem, mas já me tinham avisado: – A partir de agora até Mueda é que as coisas aquecem!

A FRELIMO estava bem ativa nessa área, se estava!              

Era já noite; escurece cedo em Moçambique.

Após o estrondo, enquanto me recompunha, ouvi gritarem: “ai ai, acudam-me! Furriel, meu furriel, ajude-me!”.

Estava escuro como breu, não se via nada à frente, apenas sabia que tinha de saltar da Berliett, o mais longe possível da berma da picada, por forma a evitar as minas antipessoal plantadas pelo inimigo. 

Tinha de ultrapassar o medo e ir buscar a vítima que chamava por mim. Entreguei a G-3 ao soldado-condutor-fadista e comecei a descer, com extremo cuidado, da Berliett. Rezei para que nada me acontecesse.

Mal tocara com a ponta da bota o chão da picada, quando de repente, vindo do negrume, vi um vulto, negro como a própria noite, com uma capa de camuflado aos ombros e olhos brancos, flamejantes e profundos, brilhando na escuridão.  

Reconheci o cabo Momade. Trazia alguém nos braços e que gemia. Senti um cheiro de sangue e de carne e pólvora queimada, uma mistura diabólica, que me invadiu todo, indefinível, mas que nunca esquecerei.

Àquele homem, que o cabo Momade trazia ao colo, faltava-lhe um bom bocado de uma perna, abaixo do joelho, que estava exangue e ainda fumegava. 

Era o soldado Morais.

“Meu furriel, dê-me aqui uma ajuda: pegue-o pelos ombros e ambos conseguimos por o Morais na Berliett.” “Tem de se chamar o enfermeiro, tem o rádio não tem?”, acrescentou.

“Sim, sim,”, respondi automaticamente.

Após uma noite interminável deitado num colchão “lusoespuma” na carroçaria da Berliett, a morfina injetada pelo enfermeiro, o soldado Morais foi transportado no dia seguinte no helicóptero até ao hospital de Mueda.

Tendo em conta os tempos atuais e um dos temas do momento, achei oportuno partilhar com os meus leitores esta pequena história dos meus tempos de tropa e que cada um tire a sua ilação.

Somos todos diferentes mas somos todos iguais.

 

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