O que têm de comum Salazar, Amália, Mandela e Eusébio? A não ser a circunstância de terem sido contemporâneos em idades diferentes das suas vidas e o facto de dois deles terem sido políticos, à partida nada mais parece ligar estas quatro personalidades condenadas pela História a ficarem perpetuadas após a morte.
Do professor de finanças, brilhante, que governou Portugal com mão de ferro, passando pelo talento da diva do fado que nos encantou e pelo advogado, incómodo, que libertou a África do Sul do jugo da segregação racial, ficam como lembrança mais recente de todos nós as exibições exuberantes, repletas de talento, do maior jogador de futebol que Portugal já conheceu. Por enquanto…
Há um sinónimo comum, quanto a mim fundamental, que define Salazar, Amália, Mandela e Eusébio: humildade. Apaixonados pelo que faziam, obcecados na busca da perfeição, foram materialmente desprendidos e nenhum deles enriqueceu nem fez fortuna.
"Sirvo-me, de forma razoavelmente desafogada, do dinheiro que ganho em função do que faço. Não o sirvo, ele é meu escravo, não eu dele" parece ter sido a tónica comum que os norteou. Quem vive em função do vil metal – como o classificou William Shakespeare – e por ele tudo faz, vende a alma e não é humilde. Pode dizer que o é, mas não é. As pessoas apercebem-se disso, tomam conta dos sinais contraditórios, acompanham as notícias e não se esquecem.
Salazar, recordado por muitos como ditador impiedoso, é hoje admirado consensualmente pela probidade com que viveu e dirigiu o país. Era temido pelos membros corruptos do seu governo que se banqueteavam com dinheiros públicos em negociatas escuras feitas à sorrelfa do chefe. Não havia pactos de regime e a demissão, pura e simples, seguida de erradicação da administração pública eram destinos certos de quem fosse apanhado por ele com "a mão na massa".
Esta faceta de honradez, comprovada, e da autoridade moral que Salazar tinha era um ascendente sobre os demais e teve peso quando milhares de portugueses votaram nele em 2006/2007 elegendo-o como o maior português de sempre no concurso os Grandes Portugueses. Lembram-se? "Um escândalo", disseram pudicos políticos e comentadores da nossa praça da esquerda. Uma "evidência", disse a malta da direita.
"Uma consequência da Democracia prometida em Abril e não cumprida", disse eu.
A diva, que teve dias de glória e "glamour" e enterneceu corações, viveu unicamente para a sua arte e de tão distraída que era, permita-se-me a expressão, não acautelou o seu espólio que foi delapidado depois de morta.
A Mandela é conhecido um património que rondará quando muito um milhão de dólares o que não me repugna se levar em conta os muitos anos que viveu, 27 dos quais atrás das grades, e dos cargos que exerceu. Uma ninharia, míseros trocos, comparados com as largas centenas de milhões que a maioria dos líderes africanos arrecadam em negócios ruinosos para os seus países.
E Eusébio? A resposta foi dada durante todo o domingo e o dia de ontem com a maior manifestação de dor e consternação colectiva jamais vista em Portugal, pelo menos neste século. O que levou milhões de portugueses a acompanhar pelas rádios e televisões, numa maratona contínua de mais de 24 horas nunca antes vista, as cerimónias fúnebres e as homenagens ao "futebolista"? O que moveu milhares e milhares de pessoas a sair à rua comovidas, muitas delas lavadas em lágrimas? O que se viu ontem no cemitério do Lumiar foi algo de surreal e, seguramente, não se repetirá tão cedo. Terão sido apenas a força, a técnica e o talento que revelou durante os anos em que brilhou nos relvados que potenciaram um tal fenómeno?
Estou em crer que não e só por si as qualidades profissionais do atleta serão insuficientes para o justificar. A humildade, a simplicidade e a generosidade que se lhe ajustam e foram realçadas vezes sem conta, são galvanizadoras e tocam corações. Acariciam-nos a alma e faz-nos sentir humanos. É de ser humano assim ser. A volúpia do poder e a ambição desmedida só aproveitam quem delas sofre, não arrastam multidões, conspurcam e não deixam boa memória. E os portugueses, a grande maioria dos portugueses, deram ontem prova de que sabem interpretar os sinais e prestam tributo, sério e sentido, a quem tem de facto a simplicidade que caracteriza os grandes.
As ilações, alguém as terá que tirar.
Um Bom Ano para todos!
Vítor Catulo