Registei a data: 4 de Julho de 2013. Uma vaga de calor infernal assolava o país de norte a sul. “Vinte e oito graus à sombra” logo pela manhã em Santarém. Nem mesmo assim deixei de me fazer à estrada e cumprir o plano de caminhada habitual a que me propus desde há uns anos. Só chuva torrencial impede-me de cumprir o ritual, calor e frio não. Suporto bem os malvados, é tudo uma questão de preparação prévia e de automotivação. Recorro à máxima “fazer o que deve ser feito”, tão simples como isso.
Como que a sentir-me legionário em “Beau Geste” ou a imaginar-me na pele do malogrado Capitão Scott, equipo-me consoante a época e lá vou às primeiras horas da manhã a calcorrear ruas e avenidas, carreiros e caminhos desta terra que fiz minha e que me acolheu e à minha gente há muitos anos. Caminhando, vemos coisas e reparamos em pormenores de uma cidade em movimento que nos passam despercebidos quando andamos de carro. E há um pequeno objecto, obra prima da tecnologia moderna, que não dispenso. Chama-se MP3 e como dou valor às coisas, ou antes, a quem as concebeu e fabricou, tenho o mesmo aparelhito há vários anos, daí que se os empresários do ramo dependessem só de mim não teriam grande futuro.
Enquanto caminho ouço música e não dispenso a informação. Nesse dia ouvia a TSF. Uma escolha aleatória, nunca gostei de me fixar a rotinas que posso evitar. Um pequeno privilégio de liberdade a que me permito e me faz bem. Em boa hora sintonizei a estação: estava a começar uma excelente reportagem da jornalista Maria Augusta Casaca sobre o assassinato a tiro de Catarina Eufémia.
No dia 19 de Maio de 1954, em Baleizão, um rancho de assalariados agrícolas, extremamente pobres e fortemente explorados, reivindicavam um pagamento de jornas mais justo. A tensão era grande e alguém chamou a Guarda. Longe de diminuir a tensão aumentou, o tumulto aconteceu e o sangue de Catarina jorrou.
O autor dos três disparos fatais, Tenente da GNR João Carrajola, feitos, segundo o relatório da autópsia, “pelas pelas costas e à queima roupa”, foi ilibado pela justiça do regime. No relatório oficial da corporação, apresentado seis anos depois, atribuiu-se como causa da morte um disparo acidental da pistola metralhadora que o comandante da força usava quando foi chamado para pôr na ordem os revoltosos. Uma prática recorrente nos regimes ditatoriais é amenizar os problemas sociais e dar cobertura aos desmandos dos agentes da lei através da garantia administrativa.
Em Portugal, a garantia administrativa era requerida pelos polícias quando a contas com a Justiça por actos praticados em serviço contra os cidadãos. Diferida a petição, não eram investigados pelas autoridades civis nem julgados por tribunais civis. Após uma investigação muito sumária aos factos conduzida por um oficial da PJM, cujo relatório final e conclusões era levado muito a sério na ótica de que “palavra de oficial é palavra de honra” se este não propusesse o arquivamento do “auto de corpo de delito”, o réu seguia para julgamento em Tribunal Militar onde o mais certo era vir a ser absolvido.
Com a Revolução de 25 de Abril a garantia administrativa foi extinta e os agentes policiais, suspeitos da prática de crimes no exercício das suas funções, passaram a ser investigados pelo MP e julgados em tribunais civis tal como os demais cidadãos. Grosso modo, é o princípio lógico do Estado de Direito: ninguém está acima da lei e quem se julga acima da lei é um fora da lei.
Mas voltando à nossa Catarina: a figura desta camponesa, de aparência frágil e subnutrida, dando fé a testemunhos da época, casada e mãe de três filhos, a lutar com a força e a determinação de uma leoa por melhores condições de vida para si e para os seus, fascinou-me desde que a História veio ter comigo e me disse ter ela existido.
O Alentejo era o celeiro de Portugal, ensinaram-nos na escola. Mas a que preço? Tanta fome e sofrimento viveram os camponeses alentejanos sob o jugo dos latifundiários ricos que, à custa do seu suor e da revolta tantas vezes calada à força das armas e a bastonada, construíam fortunas e erguiam palacetes e mansões em Lisboa, sede do poder que os oprimia!
Não estarei a exagerar se disser que vivemos hoje numa sociedade de exploração e de miséria disfarçada que é algo semelhante à que se vivia há sessenta anos. Tudo é feito e delineado em função da gula dos “mercados” e as novas tecnologias de que dispomos estão a funcionar como supressores do pensamento. Não se pensa e estamos a interagir por modelos estereotipados estrangeiros tirados de revistas cor de rosa de leitura rápida quando temos uma História rica e símbolos fortes no nosso país.
Precisamos de nos reencontrar com o nosso passado e ir buscar inspiração em quem rasgou caminhos e ousou dizer não.
Catarina Eufémia foi morta em 19 de Maio de 1954 quando clamava por Justiça. O mínimo que poderíamos fazer no sexagésimo aniversário da sua morte, todos as portuguesas e todos os portugueses, era dedicarmos-lhe um minuto de silêncio e deste modo prestar homenagem a todas as mulheres de Portugal.