Os políticos portugueses ficam muito ofendidos quando lhe chamam palhaços. Mas é preciso gostar muito de circo para manter em cena, em nome do superior interesse nacional, durante quase dois meses, a triste palhaçada a que estamos a assistir. Além disso, só uma direita a lembrar a de outros tempos (a tal direita pouco inteligente) é que se ufanava com os argumentos de Cavaco Silva para não dar posse a um Governo de “Esquerda”. É que esses argumentos (mais depressa do que pensam) vão assentar como uma luva num Presidente de “Esquerda” para interferir, derrubar ou recusar a posse de um governo de “Direita”. Os maiores inimigos da Liberdade sempre foram aqueles que actuam como se fossem a encarnação do superior interesse nacional.
Num país pouco dado a palhaçadas, o Presidente, no dia a seguir às eleições, indigitava o presidente do partido mais votado para fazer diligências para formar governo. Caso não conseguisse reunir condições para ver o seu governo aprovado pelo Parlamento, comunicava, de imediato, ao Presidente e este convocava o presidente do segundo partido mais votado para o mesmo efeito. Ou seja, tudo feito de uma forma célere, racional e tranquila.
Acontece que, pelo caminho que se está a seguir, não tarda nada ainda iremos assistir a Presidentes da República a nomear governos de gestão e a mantê-los em funções durante todo o seu mandato. Tudo em nome do superior interesse nacional, bem entendido. E não faltarão constitucionalistas a defender a constitucionalidade da iniciativa. Palhaços!
Não deixa de ser, aliás, caricato que sejam precisamente os comentadores que mais reclamavam por grandes reformas estruturais aqueles que agora se escudam numa tradição de 40 anos para impedir a grande reforma estrutural da nossa democracia: um Governo apoiado pelo BE e pela CDU.
Para já não falar daqueles que comentam os resultados eleitorais como se as eleições legislativas tivessem sido de braço no ar. Ora, as eleições por voto secreto visam precisamente garantir a liberdade de voto, impedindo que se saiba em quem votou cada eleitor. Ou seja, cada um é livre de votar como quer e lhe apetece e pelas razões que muito bem entender, por mais estúpidas que sejam, e até sem ter qualquer razão para o fazer. Daí resulta que o deputado eleito apenas está vinculado à sua consciência, não podendo, mesmo que queira, perguntar a cada um dos seus eleitores o que o levou a votar nele. Mas uma coisa podem ter a certeza: a esmagadora maioria dos eleitores que votaram no CDS, PS, PSD, BE e CDU não votaram, em qualquer destes partidos, nem por serem ou não europeístas (90% nem sabe o que isto quer dizer), nem por serem a favor ou contra o euro. A esmagadora maioria votou nestes partidos por uma única razão: porque sim.
O que seria dos nossos políticos e comentadores se o nosso povo não gostasse de circo?
II
No seu comentário semanal, Marques Mendes escolheu um excelente exemplo para explicar aos portugueses como funciona o sistema parlamentar nas democracias ocidentais. Disse ele que, se o PS formasse governo com base numa maioria de esquerda, era o mesmo que a selecção portuguesa não ser apurada para fase final do Europeu, em virtude de os restantes clubes se coligarem e somarem os seus pontos.
O exemplo escolhido é excelente, se não tivesse sido manipulado, por força do clube do coração. Que Portugal foi o primeiro do grupo e, por essa razão, tem o direito de passar à fase seguinte é incontestável. Mas isso não significa que seja já declarado campeão europeu ou que um clube que tenha ficado em 2.º ou 3.º lugar da fase de apuramento não possa vir a ser o campeão.
Nas democracias ocidentais, passa-se rigorosamente o mesmo. Com efeito, também existe uma primeira fase de apuramento dos deputados através do voto popular. E, depois, existe uma fase final para consagração do governo através do voto dos deputados. É, por isso, perfeitamente possível e natural que quem venha a vencer a fase final não tenha ficado em primeiro lugar na fase de apuramento.
Quando ouço os nossos comentadores, jornalistas e constitucionalistas, a colocar em causa a legitimidade de António Costa ser primeiro-ministro, pelo facto de o PS não ter sido o partido mais votado, das duas: ou o fanatismo clubista cega esta gente ou são, pura e simplesmente, ignorantes sobre matéria elementar que estavam obrigados a conhecer, por força das funções que desempenham.
Esta gente tinha a obrigação de saber e, consequentemente, contribuir para esclarecer os portugueses de que, nas democracias ocidentais, as eleições legislativas, por força da separação de poderes, não se confundem com eleição do presidente da câmara, como parece resultar da maioria da opinião pública e publicada. Da mesma forma que as democracias ocidentais não se confundem com democracias plebiscitárias, à moda sul-americana ou africana, em que a ditadura da maioria esmaga as minorais e a Liberdade. Sendo certo que a nossa cultura democrática, a fazer fé no que para aí se vê e ouve, identifica-se perfeitamente com este tipo de regimes, basta ver o que se passa nas câmaras e o que se passou na Madeira.
Isto não significa, obviamente, que eu fique contente por ser governado pela coligação de esquerda, tal como não ficaria contente em continuar a ser governado pelo PAF. Quando um país segue na direcção errada, é indiferente ir pela estrada da direita ou da esquerda. Essa foi, aliás, a razão porque não votei nas legislativas. Com efeito, todos os partidos concorrentes a estas eleições propuseram-nos chegar à Índia navegando para Ocidente. Faltou, nestas eleições, o partido de D. João II. Só ele era capaz de defender a solução certa para chegar à nossa “Índia”: contornar o Cabo das Tormentas e navegar para Oriente.
Santana-Maia Leonardo