Em nada ficaria surpreendido se o nosso Desgoverno avançasse com um prémio que distinguisse o cidadão exemplar, o orgulho da raça. Incutir nas mentes pouco pensantes o desejo de também ser condecorado com as insígnias do regime trôpego que se alimenta de nós. Já não estamos assim tão distantes dessa política vil. Corrijo, é essa a vil política que nos desgoverna.
O Desgoverno quer implementar prémios aos contribuintes que pedirem facturas no acto da compra. Claro que o faz para combater a evasão fiscal e promover boas práticas entre os contribuintes – note-se que já não somos cidadãos, essa herança da Grécia Antiga e da sua pólis –, preocupado que está com a sustentabilidade do Estado. Hipócritas! Canalizar fundos para premiar uma prática cujo cumprimento deveria ser óbvio? O que mais me diverte é a tentativa infantil de amenizar multidões insurrectas. Toma um chupa-chupa e pára de chorar, como faz o pai ao filho birrento. Pois bem, nem o Desgoverno é nosso pai, só deus, ou os deuses, segundo alguns, nem nós somos crianças birrentas que se deixam adoçar com um rebuçado insípido. Só os Zés-Ninguéns que nos desgovernam, que ascenderam socialmente segundo a lógica de pensamento do faço-birra-ganho-prémio, poderiam supor que nos deixaríamos alhear com estes jogos de diversão. Tentativa de propaganda pura, igual ou pior do que todas as propagandas de todos os regimes ditatoriais que existiram e que ainda vigoram.
Este é o Desgoverno do Zé-Ninguém-Mor para o Zé-Ninguém-Servo, hierarquia imunda que me lembra as vassalagens, talhado para as mentes desprovidas de qualquer senso de verticalidade. O que virá a seguir? Os prémios aos bufos, aos cidadãos exemplares, ao orgulho da raça? Prometam-nos também o Céu em troca de uma nota de quinhentos, vá! A dignidade e a honra não se compram com bulas e prémios. Ou nascem connosco, não no berço, mas no coração, ou andaremos uma vida inteira a viver como sombras. Como Zés que são Ninguém. E bem podem travestir-se de homens e mulheres honrados, gentes bem pensantes com ar aristocrata. Quanto mais tentam fazer-se passar pelos melhores, os melhores riem-se de vós. E enquanto caminharem como sombras sobre a terra, muito mal, mas muito mal provirá do que fizerem.
“O maior mal do mundo é o mal cometido por zés-ninguéns”. A frase soou limpa e clara, dita por Barbara Sukowa, actriz que dá corpo e vida à filósofa Hannah Arendt, no filme de Margarethe von Trotta. Pois quando os Zés-Ninguéns voltarem a entrar-nos em casa como o fizeram em quase cinquenta anos salazarentos, outros tantos de Inquisição e mais uns poucos de reis déspotas, não se atrevam a dizer-me que não vos avisei.
Samuel Pimenta
Escritor