Começou por ver luz, apenas luz. Luz da manhã, sol dourado que se intrusava nas frestas do móvel e lhe ofuscava a visão. O álbum de fotografias fora retirado do fundo da gaveta e deitado sobre o colo de alguém saudoso. Não se lembrava da última vez em que vira a luz do sol. Ao espreguiçar a capa rija grená, sentiu estalar a lombada preta. O álbum vivia na clausura do móvel há tempo suficiente para ranger de velho. Alguém saudoso virou-lhe a primeira folha espessa, que estalou amarelada: duas fotografias por página; três mais pequenas, por vezes. Todas amareladas também. Em vez de branca, a velhice das folhas é amarela. Castanha quando se aproxima da morte. Preta.
O álbum de fotografias foi reaberto. Alguém saudoso recordou vidas e rostos que, ali, jamais pereceriam. A juventude da mãe. O pai que já partira para junto dos que não vemos. A criança que fora. As histórias dos avós. Os jantares, as festas, a alegria. Amigos, viagens, namoros. O amor. Casamento e vida em comum. Filhos que nascem, que crescem, que partem. Vida. Vida em imagem retida. É essa a função de um álbum de fotografias, suspender vidas, fixar rostos, estancar o tempo. Trazer à memória o que a memória não queria esquecer. Revisitar recordações. E depois de cumprida a missão de dissipar nevoeiros, o álbum regressa à sombra da gaveta para, um dia, ser novamente resgatado para a luz de uma manhã. Assim foi. Alguém saudoso fechou o álbum, rangeu a lombada preta. E a gaveta engoliu o molho de folhas amareladas até que alguém saudoso se lembrasse de as resgatar novamente por umas horas. Recordar uns longos anos.
Um álbum de fotografias jamais é esquecido. O quase esquecido roça-o, ele sabe-o. Por isso espera, quieto. Fundo da gaveta e escuro que sobre ele se abate. Espera. Sabe que as vidas suspensas que guarda são preciosidades raras tão únicas que apenas o escuro do fundo de uma gaveta permite que resistam seguras, para que poucos lhes tenham acesso, para que poucos as vejam. Memórias íntimas que uns poucos eleitos podem folhear. Recordar. O álbum sabe que o quase esquecido jamais passará do quase, pertence a um tempo em que a fotografia é o marco de um momento escolhido para viver no eterno, na memória perene de uma imagem. Sabe que pertence a um tempo em que homens e mulheres escolhiam com rigor e cuidado as vidas que queriam deixar suspensas, gravadas no sempre numa folha de papel. O álbum não pertence à era da imagem fugaz, da overdose visual. Nunca se adaptou à banalidade do visível constante. Paradoxal, talvez. Um álbum de fotografias existe para que o invisível se torne certeza quando o outrora visível e certo tiver tombado na sombra de uma gaveta. De uma memória.
Samuel Pimenta
Escritor