20 anos depois da sua morte não esqueço as vezes em que me cruzei com Salgueiro Maia, as visitas (guiadas por ele) que fiz ao convento de S. Francisco, o tal que foi redescoberto agora, como se agora tivesse sido construido, pelo actual presidente da câmara. Aos domingos juntava pequenos grupos e mostrava com prazer a EPC, o convento de S. Francisco, o museu da cavalaria e o que fazia para preservar o património. Contava histórias, sempre com uma ironia acutilante e bem disposta. Ocupava assim o tempo que não lhe deixavam gastar a trabalhar.
Até tinha um livrinho todo catita para oferecer. Ainda guardo religiosamente um exemplar, como guardo uns dos originais do relatório militar "Operação fim do regime" que um dia me ofereceram. Um documento único dactilografado logo a 27 de Abril, onde descreve minuciosamente todas as acções militares desencadeadas em Lisboa. No relatório consta até o nome e morada de um taxista que orientou algumas viaturas até uma bomba de combustível em Santa Apolónia…)
Construiu um museu da cavalaria e do 25 de abril. A BULA, chaimite que pôs fim a 48 anos de ditadura, estava lá. Com a partida da EPC, perdeu-se para a cidade o museu. Tavez porque quem redescobriu o convento não viu que o mais valioso espólio da "capital da liberdade" desaparecia sob os seus olhos, 50 metros ao lado do convento. Não me lembro de “guerras” nem de quaisquer tentativas para o manter em Santarém. Nem tão pouco de algum voto de protesto da autarquia ou da assembleia municipal, mas lembro-me da pressa em formar a “fundação da liberdade” num espaço desprovido das memórias vivas que o museu levou.
Também não esqueço a raiva que senti quando soube que Cavaco Silva, então Primeiro Ministro, lhe tinha negado uma pensão por “serviços excepcionais prestados ao país”. Pensão que atribuiu, na altura, a dois ex-pides (António Bernardo e Óscar Cardoso que foi um dos entricheirados na Sede da PIDE a disparar sobre a multidão derramando o único sangue da revolução)
Essa raiva voltou mais forte ainda, quando vi o mesmo Cavaco Silva, já Presidente, colocar uma coroa de flores na sua estátua. Ao seu lado estava o mesmo homem que se havia indignado por ver essa mesma estátua provisoriamente guardada num armazém municipal. Indignou-se pela estátua mas orgulhou-se pela mais hipócrita, cínica e imoral homenagem que alguém prestou a outro alguém.
Vi, em criança, os seus homens chegarem de Lisboa no dia 26 de abril de 1974. Era já noite profunda e ao meu lado estava uma cidade inteira. Exactamente no mesmo sítio vi o seu corpo chegar de Lisboa num outro Abril bem mais triste. Comigo estavam apenas algumas centenas de pessoas. Foi o último adeus a um homem que não voltaria a passar por Santarém.
Salgueiro Maia marcou-me profundamente. Porque nele estão depositados os ideais de Abril. Porque o desapego ao poder, aos interesses pessoais, às homenagens vãs, ao mercado onde os homens se compram e se vendem, fez dele um homem diferente. Um homem bom.
Não mereceu o "desterro" nos açores, não mereceu a “prateleira dourada” no presídio militar, não mereceu que lhe retirassem comandos operacionais, simplesmente porque tinham medo que marchasse novamente para Lisboa. Sabiam de que fibra era feito. Não lhe perdoaram por não se vender a ninguém, nem sequer acreditaram nisso. De tudo se riu, a tudo se submeteu por respeito aos seus ideais. Talvez a Natércia me chame agora ignorante porque talvez só ela saiba o sofrimento que, silenciosamente, deve ter suportado.
Fez o que fez porque tinha de ser feito e isso bastou-lhe.
Hoje temos a sua memória e a imagem de herói romântico que a morte prematura dá aos homens bons. Mais do que tudo temos o seu legado, a liberdade de poder escrever este texto. A liberdade de uns quantos o poderem ler.
Merece o estatuto de herói mais do que nenhum português vivo e como poucos dos que já partiram. Em dose igual merecem o nosso desprezo aqueles que lhe "lixaram" ou que pactuaram com quem lhe “lixou” a vida e hoje se servem da sua imagem...
José Freitas, empresário