O mundo tem vindo a mudar e não são de agora as mudanças que invadem naturalmente o nosso dia-a-dia. Habituamo-nos a um mundo organizado em Estados-nação cujos eleitos, nos regimes democráticos ocidentais, representam um eleitorado composto dos cidadãos naturais ou radicados. Tomamos como adquirido que as nossas vidas são organizadas pelo Estado, instituição que garante a nossa segurança, direitos sociais e prosperidade.
Contudo, esta leitura não é linear e talvez nunca o tenha sido. A expansão do capitalismo sob a égide do liberalismo criou condições para a constituição de instituições desterritorializadas (para não dizer apátridas) que hoje nos governam tanto ou mais que os governos nacionais. São estas as grandes multinacionais, os grupos económicos de capitais anónimos. E a ideia que nos venderam de que “a luta de classes” era uma imaginário comunista caduco, afinal, aparece aos nossos olhos como algo cada vez mais atual. É cada vez mais evidente a existência de uma clara divisão entre os que vivem do seu trabalho e os que vivem da propriedade, de bens ou capital e respetivas rendas.
Sob o lema da prosperidade, do sonho ocidental da acumulação de riqueza e de uma noção de felicidade baseada no “ter”, fizeram-nos crer numa sociedade sem classes onde todos, pelo seu mérito, poderiam aceder à felicidade de consumo. Mas, sem que muitos se dessem conta, os critérios de valor e mérito foram sendo ajustados às condições de classe. Em muitos casos, sob o lema da igualdade, se foram perpetuando os antigos sistemas de dominação dos mais poderosos sobre os mais fracos.
E assim se passa no tabuleiro internacional, nomeadamente no que se refere ao sistema político da União Europeia. Os Estados membro como a Alemanha, a Inglaterra ou a França, ou os países do Norte da Europa, têm supremacia na tomada de decisões relativas à política europeia comum. Para além das vantagens decorrentes da dimensão demográfica, de um Estado social há muito consolidado e um sistema produtivo e financeiro robusto, estes Estados têm tido capacidade de, à luz dos tratados europeus, sujeitar os Estados mais pequenos e mais frágeis do ponto de vista económico a políticas que aumentam o fosso entre os países ricos do Norte e os países pobres do Sul e do Leste.
Não pretendo com esta análise desenvolver um discurso que faça da União Europeia a mãe de todos os males e sobretudo a instituição responsável pela austeridade. Que o é, também. Continuo, apesar de tudo, a acreditar numa Europa capaz de preservar a sua matriz humanista e social, na qual todos sejamos europeus de pleno direito. Estou convencida que houve erros de percurso, como foi o caso do reforço efetivo dos poderes do Conselho Europeu, onde os governantes nacionais, sem legitimidade para tal, decidem o governo da Europa. E lamento profundamente que o Parlamento Europeu tenha perdido protagonismo na discussão de questões vitais para os europeus, como, por exemplo, a tentativa de privatização da água por toda e Europa. Incomoda-me que a distância entre os nossos representantes no Parlamento Europeu e o cidadão comum seja residual e circunscrita aos períodos eleitorais. Choca-me que não exijamos uma verdadeira prestação de contas a estes eleitos. E envergonha-me profundamente ter como presidente da Comissão Europeia alguém que gere o nosso destino comum a reboque do Conselho Europeu, que é o mesmo que dizer a mando da chanceler aliada aos seus parceiros da Europa Central e do Norte. Todas estas políticas de austeridade e empobrecimento dos países do Sul com a bênção dos nossos governantes nacionais e com a inércia dos parlamentares europeus!
Não é esta a Europa que eu quero, e continuo a defender o meu direito de cidadania europeia e a defender uma sociedade que saiba encontrar o equilíbrio entre o desenvolvimento sustentado e uma economia ao serviço dos cidadãos e não de uma prosperidade de fachada que mais não faz do que empobrecer os cidadãos e os seus Estados e engordar as contas offshore do capital sem rosto nem cartão de cidadão. Quero uma Europa menos desigual, mais solidária, mais responsável, mais transparente.
Não há volta a dar! Num mundo globalizado é inevitável a nossa condição “pós-nacional”, como refere Habermas, não para acabar com os Estados nacionais mas para discutir e construir um projeto de Europa que não se limite às decisões ilegítimas dos nossos governantes num clube restrito de primeiros-ministros que combinam entre si como melhor fazer passar políticas neoliberais que mais não têm feito do que aumentar as riquezas de alguns à custa do empobrecimento de muitos.
Este Conselho Europeu tem defendido políticas que retiram aos Estados as suas obrigações perante os cidadãos (saúde, educação, ação social, energia, transportes e meios de comunicação vitais para a defesa dos territórios), reforçando os seus poderes de fisco (e confisco) e reduzindo as liberdades individuais em nome da segurança (mais da propriedade e menos dos indivíduos). Este Conselho Europeu tem uma agenda ideológica comum que defende mais poder para o Estado, a entrega da riqueza aos grandes grupos económicos em nome da liberdade de iniciativa, a redução dos direitos sociais ao mínimo, entregando cada indivíduo à sua sorte. Este é o Conselho Europeu onde os cidadãos europeus de Portugal têm sido representados por um Primeiro-Ministro que rasgou a insígnia e a matriz de um partido intitulado de Social-Democrata.
É por estas razões que defendo que, em 2014, é vital que nos impliquemos na escolha dos nossos representantes no Parlamento Europeu. Que sejamos exigentes na escolha dos nos representarão num debate necessário e urgente sobre a Europa que queremos. Que exijamos mecanismos de proximidade e prestação de contas dos eleitos europeus aos cidadãos nacionais. Que saibamos defender a escolha de representantes com base em critérios de cultura democrática, de uma visão para a Europa, e de competência comprovada por um currículo sólido, e não em nome de uma lógica de tabuleiro partidário.
Fazemos parte da Europa. Como berço da democracia, a Europa tem o desafio de transnacionalizar a democracia e de, com o seu exercício efetivo, pugnar por um equilíbrio desejado entre a política e os mercados. Não precisamos de mais do mesmo nem que nos ponham de cócoras perante os mercados.
Elvira Tristão
Professora