A reportagem da autoria de Ana Leal, transmitida pela TVI no dia 4 de Novembro, apresenta uma realidade duplamente escandalosa: a existência de uma educação dual, com os alunos das escolas privadas a beneficiar de mais financiamento público, logo, de maiores regalias; um Estado paralelo, opaco e esbanjador de recursos públicos alegadamente em nome do bem comum mas em benefício de interesses empresariais privados.
Esta realidade põe a nu a tensão existente entre duas visões para a educação: por um lado, vista como um serviço público, assegurado pelo Estado visando o bem comum das comunidades, por outro, encarada como um bem privado, mercantilizável. Opõe-se a uma perspetiva comunitarista (que concebe a educação como uma função do Estado que garanta simultaneamente o desenvolvimento do capital humano, a coesão social e a identidade nacional) uma visão liberal que, em nome da liberdade dos indivíduos, defende o direito de escolha. Esta segunda visão encara a educação como um bem privado, um serviço prestado aos indivíduos, para seu benefício pessoal. As qualificações adquiridas na escola funcionam assim como capital (moeda de troca) no competitivo mercado de trabalho e, em consequência, garantindo um estatuto social confortável ou possibilitando a mobilidade social. Neste sentido, somos todos indivíduos com um vínculo frágil a um coletivo nacional, em vez de cidadãos simultaneamente contribuintes e beneficiários de uma comunidade detentora de um “imaginário social” partilhado. Só assim se compreende que um Primeiro-Ministro aconselhe os seus cidadãos mais preparados a emigrar, abrindo mão do capital humano em quem o país tinha investido.
A teoria do capital humano, que tem orientado as políticas educativas em todo o mundo, associada aos princípios de eficácia e eficiência, tem contribuído para uma visão economicista da educação. Privilegiando uma perspetiva individualista da educação, enquanto bem privado, as políticas educativas dos últimos trinta anos têm vindo a abrir caminho à privatização do serviço público de educação. A par com o princípio filosófico da liberdade de escolha, esta proposta política de privatizar as escolas tem-se robustecido assente nos princípios da eficiência e eficácia promovidas à custa da competição entre instituições públicas e privadas.
Ora, a reportagem de Ana Leal desmonta alguns dos chavões que têm promovido a privatização da educação e a liberdade de escolha. Em primeiro lugar, a privatização não significa menos despesa para o Estado, como se viu pelas diferenças de condições que um financiamento estatal diferenciado permite. Em segundo lugar, a justiça e a coesão social estão ausentes desta resposta política quando se vê o desinvestimento do Estado no serviço público de educação e o aumento do financiamento para o privado como previsto no orçamento de Estado para 2014. Em terceiro lugar, a recente publicação do novo estatuto do ensino privado e cooperativo abre caminho ao encerramento de escolas públicas, desbaratando duplamente o erário público (o que se investiu e se abandona, as indemnizações e subsídios de desemprego, o aumento de financiamento público a privados). Com a privatização das escolas, teremos o agravamento de um ensino dual: as escolas públicas empobrecidas, sem autonomia, destinadas aos que não têm liberdade de escolha (porque não detêm informações para escolher, porque não têm oferta para escolher, nas regiões mais deprimidas, porque haverá sempre escolas com estratégias de evitamento para alunos “problemáticos” e que não garantem os bons lugares nos rankings) e as escolas privadas para os que podem escolher. Teremos (ainda mais) a educação como um bem privado, financiado por recursos públicos mas entregues a privados. Ademais, a avaliação das escolas privadas pelos serviços tutelares não é sujeita a escrutínio público como é o caso das escolas estatais cujos relatórios de avaliação são públicos. Ficamo-nos com os soundbites dos lugares cimeiros que ocupam nos rankings elaborados a partir dos resultados dos exames – um instrumento que, apesar de útil, tão pouco nos diz sobre a qualidade da educação!
Poderia continuar a minha reflexão para a qual não me faltaria matéria. Deixo somente algumas perguntas em jeito de provocação: Se a educação é, afinal, um bem privado, porque não serem as famílias a pagá-la? Assim tê-la-ia quem a pudesse pagar. Pois, mas isso seria de uma grande injustiça social e, além disso, ameaçaria a coesão social. E porque exigimos da educação valores constitutivos de uma sociedade mais justa e solidária, mais competente e qualificada, mais cidadã e empenhada no bem coletivo, mas a concebemos cada vez mais como um instrumento económico ao serviço do individualismo? Porque não uma escola pública mais inclusiva e incluída, mais autónoma em interdependência com a comunidade envolvente, enfim, mais socialmente eficaz? Pode a liberdade de escolha ser pensada como participação cívica das comunidades na educação dos seus concidadãos, em detrimento de uma liberdade de escolha individualista na lógica dos mercados? Eu acho que pode. E, com todo o respeito pelo ensino privado, não precisamos de privatizar para educar melhor. Só precisamos, todos, de fazer melhor. Essa seria a verdadeira reforma do Estado na Educação.
Elvira Tristão
Professora