A massificação do ensino secundário – com um atraso de 20 anos em Portugal – criou problemas à escola aos quais, até hoje, ela não tem sabido responder. Concebida para a burguesia, a escola privilegiava o saber académico, o conhecimento explícito ou declarativo, facilmente avaliado em testes e exames escritos. A mobilização desses conhecimentos – traduzidos em práticas socioprofissionais – fazia-se sobretudo no contexto social de pertença. Trocando por miúdos, os filhos de doutores e engenheiros seguiam o exemplo dos pais e a classe operária também. No segundo e terceiro quarteis do século XX, a evolução da escola integrou esta sua função reprodutora da sociedade com a instituição dos liceus nacionais, por um lado, e as escolas industriais e comerciais, por outro. Todos sabemos bem quem frequentava uns e outros estabelecimentos.
Na segunda metade do século XX – em Portugal com o 25 de Abril de 1974 -, a evolução dos sistemas de ensino privilegiou as “comprehensive schools”, ou seja, o ensino secundário (ou pós primário) passou a contemplar uma etapa de aprendizagens destinadas ao desenvolvimento integral dos jovens, permitindo a todos, independentemente da classe social de origem ou de características psicossociais de aprendizagem, as mesmas oportunidades. Tratava-se de uma perspetiva humanista do ensino, marcada por um contexto de desenvolvimento das democracias, sobretudo europeias.
Contudo, formatada pela matriz fundadora, a escola continuou a ter dificuldade de ensinar a todos “como se fosse um só”. Além disso, a valorização do trabalho para o crescimento do consumo e com este o económico, num mundo assumidamente capitalista, privilegiou a função de preparar os jovens para o mercado de trabalho mais do que para a cidadania. Ou melhor, vivemos em sociedades que privilegiam a dimensão laboral e produtiva no exercício da cidadania.
É, pois, neste contexto (que não é exclusivamente português) que o ensino profissional ganha relevo nos sistemas de ensino. Ademais, a evolução tecnológica e a necessidade de mão-de-obra qualificada fazem do ensino profissional um setor chave do ensino secundário. Acrescento, aliás, que a sua necessidade é inquestionável.
O problema é que o ensino profissional é encarado de modo diferente por diferentes governos em função de crenças e convicções que têm raízes ideológicas profundas que entroncam na visão que se tem da escola. Para uns, a escola tem uma função reprodutora da sociedade; para outros, a escola é vista como um meio de ascensão social. Os primeiros defendem a criação de fileiras vocacionais desde mais tenra idade, os segundos são defensores de uma educação mais humanista, abrangente em termos de leque de áreas do conhecimento e promotora de indivíduos capazes de fazer as suas escolhas. Para uns o ensino profissional é uma escolha para um projeto de vida, para outros é um modo de organizar o ensino em função das características psicossociais dos alunos e dar resposta a problemas económico-sociais.
Dir-me-ão que as coisas não são assim tão simples e são capazes de ter razão. Mas para refletir sobre um assunto temos de nos esforçar por tornar simples o que é complexo, sem abdicar da sua complexidade.
Chegamos ao que me trouxe aqui: o ensino profissional. Criada uma rede de escolas profissionais, na década de 1980, pelo então secretário de estado Joaquim Azevedo, esta surgiu como uma resposta às necessidades do setor empresarial e aos jovens que não tinham como projeto de vida o prosseguimento de estudos no ensino superior. A migração desta rede de ensino profissional para as escolas públicas fez-se, em parte, com os cursos tecnológicos na década de 1990 e, de modo massificado, com os cursos de educação e formação de jovens, de dupla certificação, no governo de José Sócrates, no âmbito do programa Novas Oportunidades. Os cursos profissionais do ensino secundário integraram também esse conjunto de medidas que constituíram, por sua vez, um programa de apoios financeiros às escolas públicas, visto que até aí só as escolas profissionais privadas podiam recorrer a esses fundos.
Com o programa Novas Oportunidades o ensino profissional passou a contemplar duas funções: a de formar profissionais e a de dar uma segunda oportunidade de conclusão do ensino básico (9º ano) ou secundário a jovens com percursos de insucesso escolar e em risco de abandono. Nestes últimos anos, políticos, líderes de opinião e cidadãos anónimos (entre os quais muitos professores) têm feito passar a mensagem da pouca qualidade do ensino profissional, sobretudo visto como uma resposta para os alunos academicamente mais fracos. Em muitos casos essas críticas foram injustas para com professores e alunos que optaram por esta resposta educativa uma vez que foi possível fazer autênticos “milagres”, reconciliando alunos com a escola e evitando historiais de abandono escolar; noutros, sobretudo nos cursos profissionais, formando e colocando mão-de-obra com qualificações e competências no mercado laboral. Há também um número grande de casos de sucesso forjado que resultam da dificuldade de uma gestão curricular verdadeiramente diferenciada, e de pressões pelos resultados, que promoveram uma tendência de facilitismo. Mas o que, na minha opinião, foi absolutamente prejudicial para o ensino profissional e para a escola pública foi uma recorrente “narrativa”, eivada de falsas verdades, que, de tão repetidas, se transformaram em verdades.
Eis-nos em 2012 e o ministro Nuno Crato anuncia o objetivo de aumentar o número de alunos inscritos no ensino profissional, já a partir do 7º ano, para pré-adolescentes que no 1º e 2º ciclos não revelaram ser alunos proficientes num sistema de ensino incapaz de detetar precocemente as suas dificuldades e de diferenciar pelas estratégias, por falta de investimento em meios humanos e formação contínua em pedagogia e didática. Assim, repetem-se respostas antigas, mas agora – o que incomoda muita gente – as respostas ditas vocacionais convivem paredes meias com as turmas de ensino regular: repete-se a fórmula das turmas dos bons as dos mais ou menos e as dos maus. E a estes últimos dá-se-lhes a ilusão de um ensino profissional, em turmas de 28 alunos, sem recursos adequados e sem terem sequer a possibilidade de dizer que não querem. E assim, depois da ilusão da inexistência da divisão de classes, bem-vindos à realidade, cada vez mais neoliberal, de uma escola que reproduz uma sociedade cada vez mais iníqua entre os que podem ter uma educação de qualidade e os “mânfios” que têm que aprender um ofício.
E somos todos responsáveis: os políticos que difundem um ideário e tomam decisões em aparentemente em consonância com esse ideário; os comentadores de serviço (que muitas vezes trocam de posição com os anteriores); e todos nós, uns que se resignam ao que sempre foi e optam por uma escola reprodutora e os que, inconformados, pugnam pela utopia de uma escola transformadora onde seja possível promover a cidadania democrática.
Elvira Tristão
Professora