Todos os dias ouvimos falar da crise financeira e da crise económica em que nos vamos afundando desde 2009. Assistimos a políticas de austeridade que todos os dias pioram a qualidade dos nossos serviços públicos ao mesmo tempo que nos confiscam os rendimentos do trabalho, e nos casos mais graves – que têm vindo a aumentar – que nos destroem os postos de trabalho. E enquanto procuramos sobreviver como podemos às incertezas que se abatem sobre as nossas vidas, assistimos ao declínio da democracia e das instituições democráticas.
O que todos nós já vimos é que se abateu sobre a nossa sociedade uma crise de valores que tem vindo a minar as nossas instituições democráticas. A mais recente palhaçada sobre esta matéria é alteração à lei eleitoral autárquica que supostamente limitaria os mandatos autárquicos dos presidentes dos órgãos executivos. A recente decisão do tribunal constitucional veio, afinal, permitir que os dinossauros do poder local pudessem praticar a transumância e concorrer ad eternum ao cargo de presidente de câmara ou presidente de junta de freguesia. Percebemos, pelos contornos da decisão política, que andaram a brincar connosco e que a alteração à lei foi feita para que tudo ficasse na mesma. Tudo foi tratado na Assembleia da República de modo a que o resultado fosse o que temos, isto é, deixando margem de manobra para que os poderes instituídos se recompusessem em função dos interesses.
Não culpemos a constituição nem o tribunal constitucional, pois que não são os princípios que estão errados mas sim as práticas políticas institucionalizadas ao longo dos últimos 40 anos. A culpa também não é da democracia, mas sim da falta do seu exercício por muitos e ao abuso desta por alguns.
Ao nível nacional constatamos tristemente que o estado da nossa democracia é vergonhoso. Os mesmos maus exemplos. A promiscuidade entre o poder político e o poder económico. Deputados que, na sua maioria, não nos representam em regime de exclusividade e uma comissão de ética que não pretende avaliar em bom rigor os conflitos de interesses de grande parte dos seus membros que trabalham para entidades que vêm a beneficiar das decisões políticas em que estes participam. Ministros e Secretários de Estado que ora representam os interesses da banca predadora, ora juram por sua honra defender os interesses dos portugueses. Um parlamento que se apaga perante governos com tiques de autocracia, que não debate o que realmente interessa, que aprova leis espúrias como a que impede que os portugueses venham a saber quais os rendimentos dos seus representantes.
Os partidos políticos estão hoje descredibilizados e, com isso, a democracia representativa é todos os dias posta em causa. É cada vez maior o número de cidadãos que decidem não participar nos atos eleitorais por não acreditar que o voto num qualquer partido lhes dê voz e garantias de que o interesse geral do país será defendido pelos eleitos. Por outro lado, já perceberam que “a rua” poucos mais efeitos produz que o “voto”. As manifestações e as greves pouco mais são do que “escapes emocionais” para a indignação que vai crescendo.
Acredito que o modelo da democracia representativa ainda não se esgotou e que o papel dos partidos tem de ser determinante para a regeneração da democracia. Mas não chega. É preciso, a meu ver, combinar a democracia representativa com o exercício da cidadania participativa. E esta convicção leva-me de novo à realidade do poder local onde o quadro normativo e institucional vigente o permite. Ao contrário da Assembleia da República, os cidadãos podem participar ativamente nas reuniões de Câmara e de Assembleia de Freguesia e Municipal. Além desses palcos de decisão política, existem um sem número de órgãos consultivos aos quais os cidadãos podem endereçar as suas questões: conselhos municipais de educação, de juventude, de ação social, de segurança, etc., etc.
É tempo de exigirmos que esses órgãos não nos tratem como espectadores ou que não nos convidem para participarmos em rituais de legitimação do poder decisório de alguns. É tempo de percebermos que só há democracia se a praticarmos, tomando o espaço público como um condomínio de todos. Cada vez mais, o exercício da cidadania é o garante da democracia e se todos o compreendermos com práticas de participação e exigência, os disfuncionamentos dos partidos políticos terão de ser substituídos por formas mais dialéticas e pluralistas do exercício do poder.
É por estas razões que acredito que esta crise pode ser uma oportunidade para fazermos da política uma forma de construirmos comunidades com vínculo humano e com sentido e sistemas de ação que rejeitem todo e qualquer exercício de dominação ou de neutralização da pluralidade. Por isso, a política é, para mim, um ato de resistência e de persistência que não se esgota no voto ou na participação político-partidária. Ela faz parte de todas as dimensões da nossa vida em comunidade.
As eleições autárquicas exigem de nós implicação cidadã: para conhecer os candidatos, as suas preocupações e as suas propostas; para escolher os que nos dão mais garantias de vir a pôr em prática as melhores políticas; e, fundamentalmente – quaisquer que sejam os resultados -, para exigirmos, em práticas de proximidade, que exerçam as suas funções com rigor, transparência e cultura democrática na defesa do bem comum. E para os que me acusarem de utópica, respondo que a utopia é a linha do horizonte!
Elvira Tristão
Professora