Em causa, está o uso e abuso continuado de viaturas do Exército Português para fins pessoais e familiares, como ir buscar o filho menor à escola e levantar encomendas, e a imposição de tarefas a militares subalternos, como limpar o canil e tratar do jardim na sua residência pessoal.
O Despacho de Acusação, a que a Rede Regional teve acesso, está recheado de episódios quase caricatos que ilustram a forma abusiva com que este Coronel de Infantaria terá disposto dos meios do Estado colocados à sua disposição, violando os seus deveres de zelo, de honestidade e de autoridade, segundo o Ministério Público (MP).
Filho, escola, compras, encomendas, lenha, pinhas e… um javali
Enquanto comandante do RPara, o arguido tinha direito a carro e motorista para assegurar o transporte diário de ida e volta entre a sua residência pessoal, em Lisboa, e a base da Unidade, em Tancos, no concelho da Barquinha.
Ao final da tarde e com uma frequência quase diária, segundo a Acusação, o coronel ordenava aos motoristas que fizessem um desvio para ir buscar o seu filho à escola secundária que frequentava, bem como para levar e trazer o menor à explicação, na Póvoa de Santa Iria.
O MP refere ainda que, durante os três anos em que comandou o RPara, entre 30 de outubro de 2013 e 1 de novembro de 2016, o oficial usou a viatura e os seus subalternos em várias ocasiões para levantar encomendas e correspondência pessoal, para ir às compras e à farmácia, para transportar lenha e pinhas da Unidade em Tancos para a sua casa em Lisboa, e até para levar os seus cães para receber assistência veterinária na base militar.
Um dos casos mais anedóticos narrados na Acusação envolve um javali que o coronel caçou, em agosto de 2016; de Lisboa, o arguido telefonou para a Unidade e deu ordens para que um carro fosse recolher a peça de caça, levando-o novamente para Tancos, onde foi armazenado na cozinha da unidade e serviu posteriormente para um convívio com todos os que estavam sob o seu comando.
Abuso de poder sobre subalternos
Os militares designados para transportar o coronel nas suas deslocações de serviço pernoitavam no Regimento de Transportes (RT), em Lisboa, onde ficaria também a viatura de serviço.
Segundo o MP, de manhã, quando iam buscar o arguido a casa, e ao final da tarde, quando regressavam de Tancos, os condutores recebiam ordens para alimentar os cães de caça e limpar-lhes o canil, bem como para regar o jardim e tratar da relva.
No Verão de 2015, de acordo com a Acusação, o comandante terá dado ordens a um dos militares para tratar da sua residência pessoal e animais de companhia, enquanto esteve uma semana ausente de férias.
Os três crimes de abuso de poder pelos quais vai responder são referentes às tarefas impostas a militares com patente inferior, ao passo que um dos crimes de peculato de uso refere-se à utilização indevida das viaturas, e o outro à utilização de uma PEN de banda larga, que não entregou à Unidade depois de ter sido substituído no cargo de comandante do RPara.
Segundo a acusação, o arguido continuou a servir-se da PEN para fins pessoais durante vários meses, numa situação que só cessou porque o seu substituto no Comando mandou desativar o serviço quando percebeu que estava a pagar algo que não se encontrava na base de Tancos.
Com este comportamento, o arguido terá prejudicado o Estado em 1.207 euros, verba que o MP peticiona em pedido de indemnização cível.
Arguido nega factos constantes da Acusação
Na Contestação que apresentou ao processo, o arguido não só nega cabalmente as situações de abuso descritas no Despacho de Acusação do MP, como pede a extinção do procedimento criminal, que carece de fundamentação de facto e de direito.
Genericamente, o ex-comandante desmente que tenha usado as viaturas de serviço para assegurar deslocações pessoais e do agregado familiar com a regularidade descrita, embora admita que isso possa ter acontecido pontualmente em situações motivadas por imprevistos, e que só manteve a posse da PEN de banda larga por mais 10 meses porque acreditava que lhe tinha sido atribuída a si, desconhecendo que era efetivamente para ser usada pelo Comando da Unidade.
Sobre o abuso de poder sobre subalternos, o coronel esclarece que os mesmos realizaram pontualmente algumas das tarefas descritas, mas por iniciativa própria e vontade de ajudar o arguido, ou a troco de um pagamento por trabalhos feitos foras das horas de serviço.
Segundo a Contestação, as condutas do arguido devem ser analisadas numa perspetiva inteiramente diversa daquela que é plasmada no Despacho de Acusação, que exacerba factos penalmente irrelevantes, e que mancham a carreira imaculada de um oficial do Exército com 36 anos de serviço e com muitos louvores e condecorações recebidas.
Voltemos ao javali…
Sobre o javali, o arguido começa por esclarecer que o caso nada tem de diferente em relação a qualquer outro donativo feito ao RPara, sendo prática corrente o Exército disponibilizar os meios necessários para assegurar o seu transporte.
Tendo em conta que um quilo de carne de javali custará 25 euros, o arguido ofereceu, do seu bolso, cerca 3.750 euros em carne, pois a peça de caça degustada no convívio teria cerca de 150 quilos.
Uma vez que o convívio reuniu cerca de 350 pessoas, entre militares e civis, e fazendo as contas a 2 euros por refeição, o arguido terá poupado ao Estado cerca de 700 euros, um valor manifestamente superior aos custos do transporte do animal de Lisboa para Tancos.